#06 | Como construir um roadmap temático: da estratégia à clareza de propósito
Por que você precisa abandonar o roadmap por features e como estruturar bons temas estratégicos no lugar.
Tenho percebido, em algumas organizações, uma transformação silenciosa em curso — e ela diz respeito à forma como lideranças articulam futuro, prioridades e alinhamento.
Durante muito tempo, tratamos o roadmap de produto como um cronograma: uma linha do tempo que prometia entregas. Era um artefato confortável — para quem cobrava e para quem produzia — porque oferecia uma ilusão de previsibilidade. Mas, conforme os ciclos de mercado encurtaram, as incertezas se ampliaram e a pressão por geração de valor se intensificou, esse modelo passou a se mostrar não apenas ultrapassado, mas perigoso.
O roadmap tradicional, baseado em funcionalidades e datas fixas, rompeu sua utilidade estratégica. E, com ele, surge uma pergunta incômoda: o que colocamos no lugar?
Minha aposta — sustentada por prática e teoria — é o Roadmap Temático (Theme-Based Roadmapping): uma abordagem que parte da estratégia e se organiza em torno de temas estruturantes, não de funcionalidades prescritas. E é sobre isso que vamos falar nesta série composta por duas partes.
Estamos utilizando esta abordagem na RD Station há alguns meses, e isto me coloca em um lugar privilegiado para avaliar o impacto desta abordagem para times e stakeholders.
🧭 O diagnóstico: por que os roadmaps tradicionais falham
Antes de aprofundarmos na construção de temas, é essencial entender o que estamos deixando para trás — e por quê.
De acordo com estudos recentes:
95% dos novos produtos falham, e um dos principais motivos é a desconexão entre o roadmap e as reais necessidades dos usuários (MIT, 2022).
Ao menos 50% das funcionalidades planejadas em roadmaps tradicionais não geram valor percebido (ProductPlan, 2023).
Roadmaps detalhados em excesso criam promessas impossíveis de cumprir e erodem a confiança entre times e stakeholders (Harled, 2022).
Esses dados não são estatísticas frias. São sintomas de um problema mais profundo: nós organizamos nossos esforços com base naquilo que será entregue, e não naquilo que precisa ser resolvido.
Essa inversão de lógica transforma times em esteiras de produção. E lideranças de produto, em gerentes de cronograma.
🧱 O que é um roadmap temático?
O roadmap temático é uma abordagem que rompe com a lógica prescritiva. Ele não pergunta “o que vamos entregar em julho?”, mas sim:
“Quais são os grandes problemas ou oportunidades que precisamos atacar neste trimestre?”
Ele se organiza por temas estratégicos — áreas de foco que expressam um alinhamento claro com a visão da empresa e que servem como direcionadores para as iniciativas dos times. Cada tema é uma lente: ele guia, mas não engessa.
Um bom roadmap temático oferece:
Clareza de propósito: todos sabem o porquê estão trabalhando em algo.
Espaço para descoberta: o time pode explorar hipóteses e validar soluções.
Alinhamento interfuncional: times de marketing, vendas, suporte e tecnologia falam a mesma língua.
Conexão com estratégia: os temas são a tradução viva da visão da empresa.
🔍 Como identificar bons temas estratégicos?
A construção de um roadmap temático começa com a identificação criteriosa dos temas que importam. E isso exige mais do que brainstorm. Exige método.
Abaixo, apresento um processo estruturado com sete pilares, baseado nas melhores práticas de produto estratégico:
1. Comece pela estratégia da empresa
Quais são os objetivos macro nos próximos trimestres? Retenção, expansão, eficiência operacional?
Geralmente estes objetivos são trazidos pela Alta Direção, de acordo com o resultado da empresa. A líderes e times de Produto cabe avaliar as melhores oportunidades do produto tracionar a estratégia.
Se um tema não se conecta a um objetivo estratégico, ele corre o risco de gerar esforço sem direção. Logo, não deveria ser priorizado.
2. Ouça os usuários – de verdade
Utilize pesquisas qualitativas, análises de comportamento, entrevistas e dados de churn. Busque entender quais problemas reais estão atrapalhando a entrega de valor.
Exemplo: Se usuários abandonam o produto nos primeiros 7 dias, talvez o tema seja “Melhorar a experiência de onboarding para aumentar retenção inicial”.
3. Observe padrões no backlog
Quais itens aparecem de forma recorrente, mas ainda não viraram prioridade? Quais demandas foram postergadas porque não se encaixavam nas entregas “do trimestre”?
O backlog, quando lido com lente estratégica, revela o que precisa de atenção sistêmica — não apenas correção pontual.
4. Consulte stakeholders com escuta ativa
CS, Vendas, Suporte e até Jurídico enxergam a operação por outras lentes. Incorporar essas visões traz temas transversais e maturidade política à construção do roadmap.
5. Deixe que a análise de dados revele fricções
Taxas de Abandono, Conversão, Engajamento. Cada métrica pode conter um problema escondido que merece virar um tema.
6. Foque em outcomes, não em features
Uma frase clichê, mas que é absolutamente verdade neste contexto.
Evite pensar em soluções específicas. Um tema deve expressar o problema, a oportunidade ou o comportamento desejado — não a funcionalidade que o resolve.
Em vez de “Criar relatório de conversão”, pense:
“Aumentar a visibilidade do funil de vendas para melhorar decisões de investimento”
7. Avalie impacto, urgência e viabilidade
Nem todo tema precisa virar prioridade agora. Mas os que forem, devem passar por critérios como impacto estratégico, valor para o cliente, complexidade técnica e capacidade do time.
📌 A estrutura de um tema bem definido
Um tema estratégico bem definido tem corpo, contexto e propósito. Sugiro utilizar esta estrutura:
📊 Como priorizar temas com critérios objetivos
Quando surgem múltiplos temas, o risco é transformar o roadmap em uma lista de desejos.
Algumas abordagens recomendadas:
✔️ Matriz de valor x complexidade
Coloque os temas em quadrantes visuais: alta complexidade x alto valor, etc.
Foque nos que têm alto valor e baixa complexidade no curto prazo.
✔️ RICE Score
Avalie Reach, Impact, Confidence e Effort para cada tema.
Um tema com grande alcance e alto impacto, mesmo que tenha esforço elevado, pode justificar investimento.
✔️ Modelo de Pontuação Ponderada
Atribua pesos para critérios como impacto no negócio, valor para o usuário, urgência, risco.
Crie pontuação final para apoiar a decisão coletiva com dados.
Priorizar é escolher. E escolher exige dizer “não”. A clareza dos critérios ajuda a evitar decisões baseadas apenas em política ou ansiedade.
🚫 Cuidado com falsos temas: o disfarce da solução
Este é um dos principais erros ao migrar para a abordagem temática: confundir tema com iniciativa. Ou, pior, travestir uma solução pronta de tema estratégico.
Exemplos de falsos temas:
“Nova tela de checkout”
“Reescrever arquitetura do front-end”
“Implementar funcionalidade X”
Esses itens não são temas. São respostas prematuras a problemas nem sempre bem definidos.
Como identificar um falso tema?
Se o time não pode explorar caminhos alternativos, não é tema.
Se já existe uma solução embutida no enunciado, não é tema.
Se não está claro qual problema estratégico está sendo atacado, não é tema.
Como reformular:
De “Nova tela de checkout” para:
“Reduzir abandono na etapa de pagamento para aumentar conversão”De “Reescrever arquitetura” para:
“Melhorar escalabilidade da aplicação para suportar crescimento projetado”
Temas são portas abertas para o pensamento crítico e para o discovery contínuo. São sistemas, não componentes. Direções, não destinos.
🧠 Para refletir:
Se você tivesse que escolher três temas estratégicos para guiar o trabalho do seu time nos próximos três meses, quais seriam?
Mais importante: o que torna esses temas legítimos, e não apenas desejos táticos disfarçados?
Se quiser compartilhar suas reflexões, estou à disposição para conversarmos diretamente. Basta responder a este e-mail.
📎 Na próxima edição:
“Da estratégia à execução: como desdobrar temas em iniciativas sem comprometer a autonomia dos times.”
Vamos discutir como os temas guiam o discovery, a priorização tática e a criação de métricas orientadas a valor — sem cair no risco da microgestão disfarçada.